O Mutualismo – O Mutualismo em Guimarães nos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX

A mutualidade é um movimento social antigo. Alguns investigadores vêem as raízes históricas do mutualismo na Antiguidade. Certos autores referem que os operários envolvidos na construção do templo de Salomão, em Jerusalém, 950 anos a. C., se associaram para se protegerem dos riscos que os ameaçavam. Outros autores referem experiências semelhantes aquando da construção das pirâmides do Egipto. Jorge Silveira considerou que só existe conhecimento de formas de organização com carácter mutualista na Grécia e no Império Romano. Foi aqui que surgiram as primeiras formas evoluídas de mutualismo.

Foi na Idade Média, sobretudo a partir do século XI, que se assistiu, praticamente por toda a Europa, a um crescente movimento de instituição de associações de socorro mútuo. O clima de paz, o desenvolvimento agrícola e comercial do Ocidente Europeu e a consequente reanimação e multiplicação das cidades, trouxe consigo importantes transformações sociais, sobretudo a emancipação das classes populares urbanas, em particular da burguesia. Estes homens “sem senhor”, vivendo à margem das estruturas feudais, deram origem a um florescente movimento associativo. A partir do séc. XIV multiplicam-se as corporações, as confrarias, as “compagnonnages” e as guildas.

As Corporações eram associações que agrupavam todos os membros de uma mesma profissão. Tinham sobretudo funções de carácter profissional. Defendiam os interesses profissionais face às ameaças do poder central ou de outras corporações; asseguravam a disciplina interna entre os seus membros; solucionavam ou mitigavam conflitos individuais ou colectivos e estimulavam o fortalecimento da consciência e da honra profissionais. As Corporações assumiam ainda funções de natureza social como o auxílio mútuo aos seus membros, contribuindo para um fundo comum destinado a protegê-los na doença, na invalidez e na velhice e a custear despesas de funeral e a assistência social a órfãos, viúvas e indigentes. Estas instituições gozavam de privilégios especiais e os seus estatutos estavam sujeitos à aprovação dos poderes públicos.

As Confrarias eram associações piedosas que se organizavam sob a protecção de um santo patrono. As diferenças entre corporações e confrarias nem sempre foram fáceis de determinar dado que existia uma estreita ligação entre profissão e religião. No entanto, estas últimas não tinham funções profissionais e podiam abranger membros de diferentes profissões. Eram fundamentalmente universos masculinos, porém, os benefícios do confrade eram extensivos à sua esposa quando esta enviuvasse. Desenvolveram, tal como as corporações, uma notável acção de protecção social aos necessitados. Criaram fundos para socorrer os associados contribuintes, mas também aplicavam o rendimento dos bens próprios em importantes iniciativas de assistência social como o apoio moral e material aos indigentes, a criação e administração de diferentes tipos de estabelecimentos assistenciais.

As “Compagnonnages” assumiram especial papel a partir do século XV. Eram uma forma de associativismo iniciada com a construção das catedrais do século XII, “em que o convívio prolongado de artesãos, empregados e companheiros de vários mesteres conduziu à necessidade de se agruparem numa base social próxima da organização mutualista de solidariedade, estabelecendo como dever a entreajuda em caso de doença, velhice e morte.” Confundem-se por vezes, com as confrarias. Afirmavam-se como associações de trabalhadores divergentes das corporações. Apresentavam fins de instrução profissional e auxílio mútuo entre os seus membros. Evidenciavam, na sua organização, traços característicos das práticas franco-maçónicas.

As Guildas tiveram grande popularidade na Alemanha e em Inglaterra. Os seus fins começaram por ser basicamente orientados para a protecção social dos necessitados. Eram associações de mercadores e transportadores de uma determinada região. O carácter económico destas associações não as desviou das funções assistenciais, nomeadamente o auxílio aos respectivos membros na vida e na morte. Concedia auxílios pecuniários nas situações de necessidade resultante de doença, incapacidade para o trabalho e velhice. Em caso de morte, garantiam ao associado o pagamento das despesas de funeral e aquisição da sepultura bem como prestações aos parentes do desaparecido.

Foi ainda durante a Idade Média que surgiram, nos Países Baixos, os primeiros Montepios confirmados pela autoridade papal. O seu iniciador terá sido o Arquiduque Alberto como reacção contra a actuação dos usurários que exploravam os mais necessitados com taxas pesadíssimas. Ter-se-á inspirado, por sua vez, na prática dos Franciscanos, nomeadamente nos frades Miguel de Milão, que criou, em Perugia, o mais antigo montepio e Bernardino de Feltre, que se destacou na divulgação destas sociedades.

A partir do século XVIII, sob a influência do racionalismo iluminista assiste-se, ao declínio da fé religiosa e até a uma descristianização. O conceito de previdência, confundido com caridade cristã, é preterido a favor dos conceitos de filantropia e fraternidade, mais de acordo com a ideologia liberal.

No entanto, estudiosos desta realidade, como Vasco Rosendo, consideram que o mutualismo, na sua versão puramente institucional, é uma realidade com apenas 200 anos. Este autor apelida de pré-mutualistas aquelas instituições com características e finalidades muito próximas do ideal mutualista actual que surgiram nos finais do século XIII. Aliás, considera mesmo que o vocábulo “mutualismo”, embora radicando na palavra latina com as declinações de “mutuus, mutua, mutuum “, significando já reciprocidade de benefícios, só surge nos dicionários de Língua Portuguesa em meados do século XX.

O mutualismo assenta no princípio de “responsabilidade colectiva privada, sem fins lucrativos”, o socorro mútuo supõe uma “comunhão de riscos a que estão sujeitos os membros de um grupo, difundindo-se, entre todos eles, os encargos a suportar com qualquer dos participantes que venha a encontrar-se em situação de necessidade.”

O mutualismo pode, assim, ser definido como “uma corrente ideológica cujos princípios assentam na reciprocidade dos serviços e na entreajuda e que se substancia na existência de um fundo comum para o qual todos concorrem através de contribuição ou quotas, de modo a permitir, de forma previdente, acautelar o futuro próprio ou dos seus familiares através de retribuições de benefícios pecuniários ou de assistência.”

Desde tempos muito recuados que a falta de um sistema de protecção social levou as populações socialmente mais desfavorecidas a desenvolverem formas de solidariedade e de entreajuda. Quando o Estado ou os organismos centrais não foram capazes de organizar uma rede centralizada de protecção social, os indivíduos menos protegidos foram obrigados a desenvolver formas de protecção e de solidariedade no âmbito do seu grupo profissional. Foi a partir do advento da sociedade industrial e das grandes massas de operários desprovidos de protecção social que o mutualismo se desenvolveu. Um pouco por toda a parte foram surgindo associações de natureza religiosa, profissional, etc., que constituíram fundos comuns destinados a auxiliar os seus pares que se encontrassem em situação de carência económica ou de doença.

Estas associações passaram por crescentes dificuldades à medida que se aproximavam as revoluções liberais. As correntes de pensamento que estiveram na origem da Revolução Francesa de 1789 contribuíram decisivamente para o declínio das associações corporativas. Após a Revolução Francesa, proibiram-se mesmo todas as associações de trabalhadores. No entanto, as profundas mutações sociais decorrentes da industrialização marcaram uma viragem definitiva em todo este processo. O sistema corporativo já não era compatível com o capitalismo industrial. A intensa industrialização e a revolução das técnicas conduziram a um vasto processo de transformações culturais, sociais e económicas. A concentração urbana, a intensa industrialização e a proliferação das empresas industriais e comerciais abalaram os alicerces da sociedade tradicional. Desenraizado do seu quadro de vida tradicional, não podendo valer-se dos mecanismos de solidariedade familiar e de vizinhança, o proletário apenas dependia do rendimento do seu trabalho e estava muito vulnerável às crises cíclicas do capitalismo. O desemprego, a doença, a incapacidade temporária ou permanente perante o trabalho, a velhice e a morte, constituíam outras tantas ameaças gravosas à vida dos operários. Esta insegurança era ainda agravada pelos baixos salários e pelas degradantes condições habitacionais e higiénico-sanitárias nas áreas de maior concentração urbana. Neste contexto, “as associações de socorros mútuos desempenharam um papel extremamente positivo no quadro da protecção social dos trabalhadores assalariados frente às novas condições de insegurança económica ditadas pelo processo de revolução industrial.

No século XIX o movimento mutualista sofre um novo impulso. Em meados deste século teve início, no continente europeu, um “vasto movimento associativo de carácter liberal e pluralista, de raiz predominantemente reivindicativa, expressão da falta de condições económicas e sociais em que vivia a classe operária de alguns países ocidentais em rápida industrialização.”

Foi neste contexto de precariedade e de ausência de políticas de assistência social dos Estados que surgiram associações operárias que incluíam actividades de socorro mútuo e outras instituições de protecção social vocacionadas para o auxílio dos seus membros. As quotizações suportáveis pelos baixos salários e as facilidades no acesso às protecções, permitiram aos assalariados uma forma de protecção social mais atractiva do que a poupança ou a assistência social.

As Associações de Socorros Mútuos em Portugal

As associações de socorros mútuos surgiram, no nosso país, em meados do século XIX. Foram uma resposta à dissolução do sistema corporativo imposta pela ideologia liberal.Com as novas associações, os operários procuravam naturalmente formas de socorro mútuo nos casos de necessidade material ou de doença.

Estas associações foram integrando não só proletários, mas também burgueses de vários estratos de riqueza, facto que ajuda a explicar a popularidade deste movimento e o mérito reconhecido pelas autoridades. De 3 associações em 1843, passou-se para 27 em 1853, 280 em 1891, 589 em 1903 e 628 em 1909. Este último número correspondia a aproximadamente 380.000 sócios, distribuídos por todos os distritos do Continente e das Ilhas Adjacentes. Os 325.930 sócios residentes na área dos distritos de Lisboa e do Porto demonstram o carácter predominantemente urbano do mutualismo associativo.

Este movimento associativo progrediu durante a Primeira República até à I Guerra Mundial. Aliás, o primeiro congresso das associações mutualistas aconteceu em Lisboa, em Junho de 1911. Neste congresso, foi criada uma Federação Nacional das Associações. O segundo Congresso ocorreu em Lisboa, em Dezembro de 1916.

Em 1915, existiam 657 associações, com um total de 462.000 sócios. Destes, 397.000 residiam nos distritos de Lisboa e Porto. Em 1921, existiam em plena actividade 685 associações, o número máximo de associações desta natureza atingido no nosso país. A partir daquela data, o número de associações diminuiu, num esforço tendente a agrupar, fundir ou partilhar esforços entre as colectividades mais pequenas. Apesar disso, o número de sócios continuou a aumentar. Em 1931, havia 533, com 575.976 associados e, em 1964, apenas existiam 133, mais treze do que em 1998.

O apertado controlo e a vigilância do funcionamento das associações mutualistas levados a cabo pelo Estado Novo, levando à sua extinção, fusão ou absorção pelas Casas do Povo e Casas dos Pescadores foram a principal razão da estagnação do mutualismo em Portugal entre o final da década de 20 e 1974. Curiosamente, a Revolução do 25 de Abril não significou o crescimento do associativismo mutualista entre nós. O acesso quase obrigatório aos benefícios do Seguro Social Obrigatório, facultado pelo Estado Providência, e a fraca procura pelos portugueses de regimes alternativos de previdência social, devido ao seu baixo nível de vida, explicam esse fraco desenvolvimento do mutualismo em Portugal.

Pelo Regime Geral de Previdência (Lei nº 1884, de 16 de Março), as associações de socorros mútuos forma compulsivamente integradas na estrutura da previdência social.

A Associação Fúnebre Familiar Operária Vimaranense

As notícias na imprensa vimaranense sobre a Associação Fúnebre Familiar Operária Vimaranense são muito esparsas e dizem respeito, fundamentalmente, à comemoração do aniversário da sua fundação. Tal como sucedia com as demais associações de socorros mútuos, essa cerimónia incluía uma missa por alma dos sócios falecidos, ou na igreja da Colegiada ou na igreja de S. Francisco. Esta cerimónia era acompanhada por vezes pela Filarmónica Vimaranense. Assim sucedeu por altura da comemoração do seu 3º aniversário.

Referindo-se às origens desta associação, o semanário vimaranense “O Regenerador” informou que, em 19 de Julho de 1908, um modesto operário, Martinho [Martim] Augusto de Passos, pensou em fundar, em Guimarães, a Associação Fúnebre Familiar, que, modestamente, vivia entre as outras associações de previdência existentes em Guimarães. O mesmo periódico referiu que, sendo pouco conhecida, esta associação lutava com dificuldades porque os operários vimaranenses, em regra, desconheciam as vantagens do princípio associativo, ou, conhecendo-as, viviam no “não me importa” que caracterizava as classes pobres. A mesma notícia relatou que esta associação realizou ultimamente os funerais de António Mendes Gaita, de S. Lázaro, e Luís Coelho, de Santa Luzia, dois confrades seus. O mesmo jornal lembrou aos operários vimaranenses a vantagem em se inscreverem como sócios desta “prestante associação”.

Uma outra referência a esta instituição relaciona-se com a organização de uma excursão a Braga. Existiu confusão relativamente a quem organizou este evento. Sobre a falsa notícia da excursão àquela cidade, o jornal “A Velha Guarda” escreveu o seguinte: “os indivíduos que nessas notícias figuram como fazendo parte da sua direcção, nem sócios são sequer, tendo, portanto abusado da boa-fé de quem os acreditou publicando-lhes a referida notícia. Por seu turno, no dia seguinte, o periódico “Comércio de Guimarães” informou que, efectivamente, se projectava uma excursão a Braga mas era promovida por um grupo de associados da Associação de Socorros Mútuos Fúnebre Familiar Bracarense e não da Associação Familiar de Guimarães”.

O semanário “A Alvorada”, na sua edição de 27 de Julho de 1911, ao fazer referência à comemoração do 3º aniversário desta associação de socorros mútuos, considerou-a “uma das mais prestimosas para as classes operárias, no pouco tempo da sua existência”. Nesta data, segundo este periódico, tinha atribuído 35 subsídios no valor de 206$300 réis.

Através do Jornal “O Republicano”, na edição de 10 de Março de 1917, sabemos que em reunião da Assembleia-Geral desta associação foram apresentados o relatório e contas da direcção e o parecer do conselho fiscal, referentes a 1916. A receita foi de 1.381$42 réis e a despesa de 901$04 réis, sendo o saldo de 480$38. O capital existente era de 1.995$10 réis.

Américo Fernando da Silva Costa; “Cap.04 – Associativismo, Mutualismo e Movimento operário em Guimarães nas primeiras décadas do século XX”; Associação Familiar Vimaranense, Um Século de Mutualismo; Julho 2009; Depósito Legal 296972/09.